segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Vitória pra quem, cara pálida?

Reproduzo aqui texto enviado pela Cláudia, do Dialógico, cujo conteúdo me parece extremamente coerente, e reflete minha opinião sobre o tema. Acompanhe:

Sem mudar a estratégia, o que muda?

Alipio Freire


O autodenominado "Campo Majoritário" - CM (ou que nome fantasia queira adotar - pois trata-se de prática já absolutamente "legitimada" do ponto de vista mercadológico desde que o PFL transubstanciou-se em DEM) criou a idéia, que pretende consensual, de que o projeto que impôs e capitaneou desde os anos 1980, e que culminou com os dois mandatos presidenciais, é um projeto vitorioso. A questão, de tão singela, é cansativa. Até os tontos percebem: Vitorioso para quem, cara-pálida? A política produzida e gerenciada pelo "Campo Majoritário" e suas principais lideranças, vista a partir do que sugere a pergunta, só conduziu os trabalhadores e o povo a uma fragorosa catástrofe: a descaracterização política (de classe), por poucos, de um instrumento de luta indispensável, e cuja construção custou o esforço de tantos. O Terceiro Congresso, é preciso que fique claro, acontece meio a uma estrondosa derrota do PT (enquanto partido), se temos como referencial de avaliação um partido de trabalhadores enquanto ferramenta política de conquistas dessa classe, o que, na realidade brasileira e internacional, hoje, implica ser capaz de avançar ou pelo menos de sinalizar na direção de mudanças estruturais de interesse da classe que diz/pretende representar. E mudanças estruturais para uma agremiação onde todas as correntes reafirmam, em suas 12 teses (inclusive o CM), a questão do "socialismo democrático", implica necessariamente discutir a questão das relações de propriedade, e da concentração de riquezas. Ou é isto, ou não há por que falar em socialismo. Ou é disto que falamos, ou mergulhamos todos no perigoso terreno da empulhação e da galhofa. A estratégia perseguida desde sempre pelo PT-CM define enquanto terreno principal para travar suas lutas, as instâncias institucionais, partindo do princípio de que, para a realização das mudanças estruturais (supondo que em algum momento o CM tenha querido fazê-las, mas não de todo convencido a este respeito) passa pela conquista do Governo - da Presidência da República. Objetivo enunciado ambiguamente, ora como "chegar ao Governo", ora como "chegar ao Poder", ambigüidade quase nunca inocente, mas que, se inocente, revelaria por si mesma a falta de preparo de suas lideranças para formular políticas. Mas, se falamos a sério, a incompetância na formulação da estratégia é mais grave que a ambigüidade acima apontada. Ainda supondo, apenas para efeito do raciocínio abstrato, que o CM tem a intenção de proceder as tais mudanças estruturais, o mais espantoso e estarrecedor é a própria definição do terreno principal de luta: a instituição - onde o inimigo é o mais forte. Reza um velho princípio da arte da política e da guerra, que devemos sempre procurar trazer o inimigo para combater no terreno onde somos (ou podemos vir a ser) os mais fortes, subordinando as lutas em outras frentes às necessidades de avanço e consolidação das lutas travadas no terreno definido como principal. Pelo menos no contexto que vivemos, nos parece óbvio que o nosso terreno privilegiado de luta são as ruas e as praças, ou seja, o da organização e expressão do povo organizado, dos trabalhadores reunidos em suas organizações classistas autônomas e independentes, sejam de caráter sindical, de bairros etc.. E a estratégia do PT-CM inverte a equação. Quanta incompetência! - é a primeira expressão que nos ocorre: colocar o centro da luta no terreno onde a classe trabalhadora e o povo são mais fracos, subordinando o desenvolvimento das organizações e lutas de massa aos interesses da instituição controlada por adversários e inimigos. As classes dominantes são dominantes e exercem sua hegemonia porque estão capilarmente organizadas (nas empresas, em associações e sindicatos patronais, em partidos, clubes rotarianos e outras maçonarias, etc.). Disputar poder, disputar hegemonia é disputar a capacidade de construir essa capilaridade organizada. Não é possível imaginar que, abandonando a tarefa de construir e fortalecer as organizações (e movimentos) independentes dos trabalhadores e do povo, seremos capazes de disputar, para além da formalidade dos cargos conquistados nas instituições, a condução dos destinos políticos da República. Esclareço, disputar enquanto classe o destino político da República. Mas foi sob a batuta dos dirigentes do CM, que o PT conseguiu a proeza de eleger um governo democrático e popular em pleno refluxo dos movimentos e organizações dos trabalhadores e do povo, contrariando tudo o que ensina desde sempre a história política (e política é a luta das classes, frações, setores, segmentos de classes na defesa e disputa dos seus interesses). Ou seja: o Partido dos Trabalhadores chega à Presidência da República sem movimentos populares fortes, sem a classe trabalhadora em cena. Mistério! - logo pensamos, abandonando os saberes acumulados a respeito do assunto e nos entregando às especulações mágicas, ou às tortuosas teorizações ad hoc, para justificar o "milagre" - há sempre um que outro teórico de plantão para o malabarismo circense do circular em torno do "poder" a qualquer preço, ainda que depois de usado e alijado se arrependa. Descartada portanto a necessidade de firmar alianças com as bases que, organizadas, são o sujeito das transformações estruturais supostamente almejadas, e sem o concurso das quais nada acontecerá nessa direção, passa-se ao novo capítulo, garantir a governabilidade. Mas as bases originais do PT - os trabalhadores organizados da cidade e do campo - não estão desorganizadas e/ou enfraquecidas apenas em conseqüência das transformações no mundo do trabalho, e o desconhecimento de como aquele se reorganizou - indústria de justificativa para a inércia e atrelamento político da parte de muitos dirigentes, e que já se repete há duas gerações de trabalhadores. Acontece que na lógica eleitoreiro-institucional que preside a estratégia definida pelo CM, não são essas antigas bases que, organizadas, se fizeram sujeito político e fundaram o PT, que contam. No projeto do CM, não apenas não interessam, como atrapalham. O caminho foi cooptar o que poderia ser cooptado no nível de suas direções e abandonar "o resto" à sua própria sorte, ou à Reforma Trabalhista que se anuncia. Enfim, na mais velha maneira de fazer política, o que decide as eleições no Brasil (além da grana da elite, e por isto mesmo) são os "grotões", os "currais" dos coronéis e oligarcas: os mais miseráveis, desorganizados, reduzidos à situação de "clientes". Ou seja, para realizar o seu projeto, o CM mudou a base social do partido. E não poderia ser diferente. Se alguns aspectos importantes da política de alianças que levou o partido à Presidência persistiram velados, a construção da governabilidade fez-se escancarada. Tendo escolhido chegar ao governo com um suposto programa democrático popular - declaração genérica de intenções que a " Carta aos brasileiros" de 2001 já desmentia in limine, agora é a corda bamba - e os resultados todos conhecemos. Quanto ao assunto da "privatização" dos fundos públicos pelo partido e/ou por alguns dos dirigentes do CM, apesar de gravíssimo, é ocioso discutir, se não se discute a estratégia. O problema está umbelicalmente ligado à estratégia escolhida: chegar ao governo no bojo do descenso das lutas populares e de trabalhadores, só é possível com a utilização das mesmas armas da velha política de sempre - métodos, ética e moral não existem autônomos. São parte inseparáveis do projeto e dos seus programas, e lhes imprime sua verdadeira "natureza". Ou seja: se o Terceiro Congresso do Partido dos Trabalhadores não for capaz de dar passos no sentido de um giro radical da sua estratégia, terá sido um rito vão, apenas uma legitimação do que vem sendo imposto há mais de duas décadas pelo CM, e cuja face agora se escancara. E, não esqueçamos: os dirigentes do CM são responsáveis por todas essas mudanças na rota do PT e, embora aparentemente incompetentes para conduzir o partido numa política de garantia de direitos e conquistas para a classe trabalhadora e seus aliado (o povo), têm se demonstrado extremamente talentosos e competentes para garantir, a partir desse instrumento que foi criado ma serviço dos interesses da classe trabalhadora, para implementar e consolidar reformas e políticas neoliberais. Certamente é essa vitória que cantam.
- Alipio Freire é membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato, é jornalista e escritor; fundador do PT, ao qual permence filiado.

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