sábado, 7 de julho de 2007

Existe ditadura "light"?

Texto "pinçado" do Nuestro Vino, que achei interessante e importante repercutir por aqui.

Batismo (só) de Sangue?

Estou longe de ser alguém de opiniões confiáveis quando o assunto é cinema. Tenho gosto duvidoso e um senso crítico para questões mais técnicas, como fotografia, roteiro e montagem, similar à vigília das tartarugas do lago da Redenção neste inverno.

Hoje à noite, ao sair da sala em que vi Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, percebi que este filme gera muitas controvérsias. Na internet, confirmei: há posições polarizadas e até mesmo uma suposta manifestação do diretor sobre as críticas. O filme, baseado no livro homônimo de Frei Betto, retrata a participação de cinco jovens dominicanos em apoio à resistência armada nas décadas de 60 e 70, durante (e contra) a ditadura militar.

As críticas, como notei tão logo acenderam as luzes e meus amigos entendidos das artes proferiram suas sentenças, são pesadas: roteiro chumbrega, algumas atuações dignas de novela da Record, trilha sofrível, pancadaria despropositada, etc. Pelas razões com que comecei este cometimento, não tenho autoridade para me manifestar sobre as questões mais técnicas. De fato, o filme parece pecar, para fazer um trocadilho com a atmosfera religiosa constante (nas inúmeras rezas, orações e cânticos que o marcam, além da trilha religiosa que o atravessa) no roteiro: a história começa de sopetão, pretensamente introduzida por um letreiro que procura contextualizar; não há maiores aprofundamentos sobre as relações dos domincanos com a resistência; é recheada idas e vindas (inclusive entre cidades distantes), como numa tentativa de abarcar muitos fatos em pouco tempo. Enfim, a história evolui truncada, abandonando diálogos, deixando de começar outros e atropelando conteúdos. Até eu percebi isso. Quanto a algumas atuações, realmente, foi brabo. Caio Blat, no entanto, como Frei Tito, me pareceu muito bem. Talvez em função do próprio roteiro, o papel de muitos atores foi mal explorado justamente porque não poderia ter sido diferente: resumem-se a bordões, o que torna as seqüências superficiais. Mais uma vez, até eu notei.



O ponto controverso que pode dar um debate mais interessante, do meu ponto de vista, é a questão da violência, que traz à tona ainda outras pendengas. Penso ser mais atrativo porque as questões, citadas anteriormente e sobre as quais até arrisquei alguns palpites, surgem de uma postura que se adota para ir ao cinema. Não sei dos meus amigos, mas não fui ver Batismo de Sangue esperando qualquer coisa como um David Lynch, Wim Wenders ou Stanley Kubrick (lista intelectual, gurizada, para manter o formato de crítico de cinema). Em momento algum pensei em ser contemplado por uma montagem ao melhor estilo Nouvelle Vague (ha! por essa não esperavam!). Por isso digo que é questão de postura. Todas as críticas à estética do filme não só podem como devem ser feitas. O problema é parar por aí. Como leigo em cinema (e não digo isso para fugir à responsabilidade do que escrevo, mas apenas para alertar sobre a origem de eventuais e possíveis erros), penso que entender de cinema não é só emitir comentários quando se sai da sala, mas ter a mínima noção de que filme se está para ver. As críticas não levam em conta apenas o que é projetado no escuro - falam em orçamento, discutem possibilidades de luz, razões para os movimentos de câmera, entre (tantas) outras coisas que nem desconfio. Por que não levar em conta, também, o contexto político em que é produzido o filme? Será que um filme de temática essencialmente histórica e, portanto, política, não deve ser discutido também em função de sua proposta para a temática, de suas pretensões políticas? Neste sentido, a resposta de Ratton a algumas críticas me parece acertada: "[...] a verdade é que algumas pessoas que escrevem sobre cinema têm profunda antipatia por filmes abertos ao público. Para essas pessoas, os filmes devem ser cifrados, numa tal demonstração de inteligência e sofisticação que só os iniciados sejam capazes de decifrar. Confundem o simples, tão difícil de alcançar, com o simplório."

Penso que outras discussões sobre Batismo de Sangue não são apenas possíveis, mas necessárias. O cinema, por ser uma experiência essencialmente estética, não pode, evidentemente, abandonar qualquer referência estética. O conteúdo político de um filme, ainda mais como este de Helvécio Ratton, não existe como filme se não pelas câmeras, atores, luzes, roteiro, diálogos, figurino, etc. Mas a crítica não pode parar aí: ainda mais em um filme como este de Helvécio Ratton.

É verdade que a violência pode ser explorada das mais distintas formas. Quentin Tarantino faz sucesso no mundo todo despedaçando corpos com as hattori hanzo, espirrando sangue nas telas e demolindo carros em alta velocidade. Conforme algumas críticas, Batismo de Sangue tem excessos em alguns momentos, parece "apelar à violência". Qualquer apelo surge de uma falta. Como Ratton não tem um bom roteiro, preenche as lacunas do filme com muitas cenas de tortura. Fica evidente como a violência é central: seqüências inteiras de choques, chutes, socos, paus-de-arara, prisões e, ainda, flashbacks das mesmas ou de novas cenas violentas. Faça-se a crítica por aí, concordo. Mas, mais uma vez tentando levantar outra questão, não lembro de ter visto um filme brasileiro retratar a tortura da ditadura militar dessa forma. Concordo, mais uma vez como apontado na crítica, que o Delegado Fleury ficou uma caricatura, que há um maniqueísmo bobo às vezes, mas devemos levar em conta os propósitos do filme. Vivemos em um país que jamais conheceu o que realmente aconteceu na ditadura. Até hoje discute-se a abertura de arquivos desse período. Não conhecemos nossa história, a ponto de, como referiu o próprio Ratton, haver "um estudante que achava que esses fatos haviam acontecido no Chile e na Argentina, que para ele nossa ditadura tinha sido light".


As cenas podem ser consideradas apelativas no frágil contexto do filme, mas contribuem a um importante debate. Não podemos esquecer que foram baseadas em relatos de pessoas que estiveram naqueles porões. O incômodo gerado pelas fortes cenas de tortura serve, ao menos, para se ter uma idéia de que a ditadura não foi nada light. Não é uma experiência estética inovadora ou a reprodução de técnicas de grandes mestres da sétima arte. É uma alfinetada, talvez, também, em uma temática que já está virando lugar-comum no cinema. Mas como um passo à recuperação de uma memória que nunca nos permitiram ter, Batismo de Sangue é um clássico - e para isso vale todo o incômodo possível.

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