Sigo publicando textos sobre os dois desastrados (ou não, dependendo do ponto de vista) anos do governo das elites portoalegrenses. Aqui cabe um comentário. Talvez esteja nesse texto algumas das respostas de por que o prefeito tem tanta afinidade com a Brigada Militar (afinal tem - se não me engano - dois secretários egressos da BM, e importantes projetos habitacionais aos funcionários daquela instituição). Vamos ao texto, que não é dos mais curtos. Boa leitura.
Crônica de uma farsa anunciada - A disputa da segurança em Porto Alegre *
Helena Bonumá - ex-vereadora e ex-secretária de Direitos Humanos e Segurança Urbana Luiz Antonio Brenner Guimarães - coronel da BM e ex-secretário de Direitos Humanos e Segurança Urbana
Este texto tem o objetivo de avaliar a administração Fogaça nestes dois anos de governo em relação às políticas públicas de direitos humanos e segurança urbana, apontando as diferenças de projetos com a gestão da Administração Popular.
1. Segurança Urbana - o acúmulo da Administração Popular Nos últimos anos as políticas de segurança tem sido alvo de disputa acirrada. No estado, durante o Governo Olívio Dutra, houve um processo de enfrentamento em conseqüência de esforços de implantação de um projeto alternativo às políticas tradicionais de segurança. Nas eleições de 2002 e 2004, esta polarização acarretou na transformação da segurança num dos temas centrais no debate político.
A Administração Popular em sua última gestão desenvolveu um processo alternativo de construir soluções para a segurança, baseado em nossa experiência de participação popular, afirmando o papel do município neste processo e realizando esforço para superar a política tradicional de segurança pública, orientada pela concepção de vigiar e punir.
Como gestora do processo criou a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SMDHSU), cuja lógica foi sustentada na compreensão de que direitos e segurança são elementos interdependentes de um mesmo fenômeno social. Assim, organizou a intervenção de forma complementar, articulando as políticas públicas e as ações sociais, desenvolvendo processos de integração das diversas instâncias públicas e comunitárias e envolvendo as ações de polícia e justiça [de responsabilidade do Estado], no sentido de superar a fragmentação do sistema e o afastamento da comunidade.
A construção da política da SMDHSU teve como pressuposto a necessidade da participação popular nas discussões da violência e da segurança, na elaboração das alternativas, no controle e na fiscalização das políticas. Como conseqüência, a Secretaria desenvolveu no primeiro semestre de 2003, seminários nas 16 regiões do Orçamento Participativo discutindo com a cidade a violência e a segurança, suas formas de manifestações, suas causas e propostas de enfrentamento, o que resultou no Plano Municipal de Segurança Urbana. No segundo semestre, em cumprimento às deliberações aprovadas no Plano Municipal, desenvolveu plenárias regionais para organizar o sistema de proteção social do município: Conselho Municipal, Fóruns Regionais e os Conselhos Comunitários, constituindo assim uma esfera pública composta pela comunidade, organizações não governamentais, órgãos públicos municipais e os organismos do sistema de justiça e polícia.
Do Plano Municipal de Segurança Urbana cabe destacar o projeto das "Intervenções Localizadas" a serem realizadas em áreas escolhidas, a partir de critérios objetivos de vulnerabilidade social frente a situações de violência, na lógica de um trabalho conjunto, com ações intensivas, variadas e simultâneas, por um período determinado de tempo, envolvendo os órgãos públicos de todos os níveis e as entidades comunitárias, buscando atingir os seguintes objetivos: a) fortalecer a organização comunitária, estimulando a auto-organização, fortalecendo a auto-estima e o resgate de sua identidade coletiva; b) construir oportunidades legítimas para afirmação de um sentido de vida alternativo às possibilidades apresentadas pelos processos de violência, incivilidade e criminalidade; c) estabelecer condições para construção de um pacto de convivência equilibrada e harmônica, com respeito às diferenças e com estímulo à solidariedade e ao espírito comunitário; e, d) definir uma metodologia de intervenção a ser agregada às políticas municipais nos processos junto às populações em situações de vulnerabilidade social.
Neste contexto, apresentamos ao Governo Federal/SENASP/ MJ um projeto de trabalho para desenvolver o programa de Segurança Cidadã, cujo convênio foi assinado em 1o de julho de 2004, projetando um investimento de quatro milhões de reais, sendo 3,2 milhões da União e o restante do município, cuja primeira parcela (50%) foi liberada no final de agosto daquele ano. O Convênio assinado prevê investimento para realizar intervenções na cidade articulando políticas de prevenção, implantando o Plano Municipal, bem como, a qualificação, valorização e modernização da Guarda Municipal. Seu período de execução era de dois anos, até junho de 2006.
A Guarda Municipal teve uma importante inserção no Projeto de Segurança Cidadã, potencializando as suas competências, garantindo a prestação de serviço no município, assumindo assim a sua responsabilidade na segurança urbana. Isto representou um redimensionamento no papel da Instituição, na sua organização, na modernização de seus recursos e na qualificação dos profissionais. Neste contexto, os guardas municipais passam a ser uma referência para as pessoas que convivem no espaço e no entorno onde atuam, quer na garantia do patrimônio (escolas, postos de saúde, parques/praças e outros prédios públicos de oferecimento de serviços), quer na garantia dos serviços (atendimento da saúde, da educação, da assistência social, fiscalização do comércio, entre outros). Entre as ampliações de suas atividades destacam-se os grupamentos formados para atuar junto aos fiscais da SMIC, que liberou integrantes da Brigada Militar para atividades de policiamento e suspendeu o repasse de 20 mil reais mensais ao estado como pagamento das horas extras, bem como, a abrangência de atuação em todas as escolas municipais, que resultou em baixos índices de furtos e roubos nestes estabelecimentos e diminuição de solicitação da presença policial nesses locais.
Ainda merecem destaque o Programa Telecentro, com 32 instalados, no mínimo um em cada região do Orçamento Participativo, constituindo uma política de inclusão digital e social, destinada a pessoas que não têm oportunidade de beneficiar-se desta tecnologia.
Complementaram estas intervenções iniciativas como: o Centro de Referência a Vítimas de Violência - CRVV; o Programa de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher; o Plano Municipal de Enfrentamento a Violência Sexual contra Criança e Adolescente. Também fizeram parte desta política a iniciativa e a contribuição para a criação do Fórum de Defesa Social da Região Metropolitana de Porto Alegre, a partir da GRANPAL, como espaço que congregasse os municípios para elaborar e implementar ações metropolitanas para a redução da violência.
2. A dimensão das ações concretas no atual governo Desde o primeiro momento, é possível elaborar uma caracterização do Governo Fogaça nesta área. A titularidade da SMDHSU foi atribuída a representação do Partido Progressista que simboliza como o Governo compreende direitos humanos e segurança urbana. Representando a manutenção de um processo histórico nesta área onde o tema dos direitos sempre foi tratado com total descaso e, a segurança, basicamente sustentada através de uma visão hegemônica de repressão, a partir da persecução penal (polícia, justiça e prisões), além de direcionar todo o esforço do aparelho de repressão a determinados segmentos. Esta caracterização ganha maior força na identidade da Secretaria Municipal com a Secretaria Estadual, também dirigida então por representação do mesmo partido (PP). Assim, na atual composição da Secretaria, há a fragmentação dos temas envolvidos e a secundarização dos núcleos de políticas públicas que compõe a Coordenação de Direitos Humanos. A retirada das políticas da juventude e dos portadores de deficiência da estrutura da Secretaria e, as criações de novas instâncias governamentais para tratar destas questões, dificultam a coordenação e a complementaridade das ações, ampliando sua fragmentação e fragilidade. Além do que, da forma como foi feito, se caracteriza mais como uma ação demagógica para cooptar estes segmentos do que um compromisso real do desenvolvimento de políticas. Por outro lado, as manifestações e a falta de ações permitem considerar que o único elemento prioritário na Secretária é o tema da Segurança Urbana, mais especificamente a atuação da Guarda Municipal, representando uma versão municipal da polícia.
A falta de rumo e de projeto é possível ser verificada pelas afirmações e ações realizadas desde os primeiros meses governo. Como a declaração do prefeito em 15 de fevereiro de 2005 anunciando a ampliação da Guarda Municipal e o lançamento do Programa Vizinhança Segura, com patrulhamento nos bairros, a começar pelo Centro, além de estimar o aumento de efetivo da Guarda de 600 para 3 mil servidores (!!!). Ou a declaração do Secretário em 15 de março do mesmo ano, na reunião da Comissão de Urbanização, Transporte e Habitação - CUTHAB, da Câmara de Vereadores, prometendo preparar em torno de 50 Guardas para o policiamento preventivo no Centro, colocando-os na rua em 30 dias.
Além dessas e outras promessas não terem sido cumpridas, no primeiro mês da nova gestão, foi retirado o Grupamento da Guarda Municipal (50GM) que atuava na garantia da fiscalização do comércio ambulante do centro, voltando esta atividade a ser realizada com integrantes da Brigada Militar, com o repasse mensal ao Estado de 20 mil reais para as horas extras. O que também reforça esta contradição de fundo: não investe nas atividades de sua competência e transfere a sua responsabilidade e os recursos para a Polícia. Isto fica bem exemplificado na discussão realizada pelo Secretário Municipal da Saúde com as autoridades da Secretaria de Segurança do Estado para resolver problemas de segurança nos Postos Municipais de Saúde, onde o mesmo propôs a alocação de integrantes da Brigada Militar da Reserva, ao custo de R$ 1 mil por PM, ao mês, recursos dos cofres dos município, o que seria uma atividade tipicamente da Guarda Municipal.
Isto reforça a confusão, pois, por um lado, o Secretário dá ênfase em atividades tipicamente de polícia tradicional, com viés repressivo e de responsabilidade do estado, como as patrulhas difusas em áreas públicas, a repressão aos 'flanelinhas' em volta do Teatro São Pedro ou o modelo reativo do Disque-Pichação, sem qualquer perspectiva de ações preventivas junto aos jovens. E, por outro lado, se omitindo ou nem participando das resoluções dos problemas específicos de segurança atribuídos ao município, como o apoio aos fiscais da SMIC e a garantia da prestação de serviço nos Postos de Saúde, quando o município repassa a sua atribuição, o seu problema e os seus recursos a Brigada Militar. Na mesma direção estão os recursos repassados pela Prefeitura Municipal, em 2006 (R$ 300 mil), para o projeto da SJS/RS de instalação de câmeras de vídeo em Porto Alegre, que é de inteira responsabilidade do Estado.
A perspectiva de intervenção repressiva, aos moldes da polícia, está bem caracterizada pelo Curso de Intervenção Tática para 150 Guardas Municipais em novembro e dezembro de 2006, realizado pelo Centro Avançado de Técnicas de Imobilização (CATI), empresa privada e, denominado pela própria Prefeitura em seu site como "Cursos da SWAT formam guardas municipais". Duas questões estão presentes neste ato. A primeira, administração municipal investiu recursos públicos totalmente em dissonância com as funções constitucionais da Guarda Municipal, uma vez que financiou um curso de treinamento especializado em tese em ocorrências complexas, que não estão na competência da Guarda. E a segunda questão, está na contratação de uma empresa privada para realizar esta atividade. Considerando a hipótese da necessidade do curso, o que não é o caso, as policiais no RS, dominam esta tecnologia, com um grau de sofisticação que é referência no país. Estas empresas privadas representam um mercado paralelo utilizados individualmente pelos policiais, com recursos próprios, para fazer cursos fora do sistema oficial, tentando habilitar-se a determinadas funções e cargos.
Analisando as propostas contidas no Plano de Governo apresentado por Fogaça na campanha eleitoral, verifica-se que não há um projeto consistente tanto no campo conceitual como no campo das intervenções. A principal ação proposta, - O programa 'Vizinhança Segura' -, carece de sustentação financeira e legal, mas fundamentalmente, não trás uma perspectiva de eficácia. Primeiro, consiste em realizar uma atividade de competência das Polícias e do Estado, no sentido de fazer mais do mesmo. Segundo é um investimento caro que desaparece na dimensão espacial e populacional de cada bairro. Que resposta poderia dar o patrulhamento de dois Guardas Municipais em uma viatura por algumas horas por dia, em qualquer dos bairros da Capital?
Outra ação que merece reflexão foi à postura do atual governo diante do Projeto Telecentro. Deixamos Porto Alegre como a cidade com maior índice per capita de acesso público à Internet do país. Em abril do primeiro ano deste governo, a administração municipal fechou a maioria dos Telecentros existentes, alegando irregularidades e necessidade de tempo para reavaliar os contratos. O problema aqui foi a falta de priorização de um projeto importante para a comunidade, especialmente a mais vulnerável. Apesar do Secretário Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana anunciar em novembro de 2005 o recebimento do Governo Federal de R$ 3 milhões para modernizar os Telecentros (ZH, 26Nov05), em outubro de 2006 a imprensa gaúcha apontava que a falta de repasse da verba, pela Prefeitura, prejudicava telecentros da Capital e que pelo menos 15 dos 33 telecentros estavam em média com três meses de atraso com a verba mensal. Uma política que consideramos central para o êxito da administração municipal no enfrentamento da violência e da segurança, que é o fortalecimento de um Sistema de Proteção Social em Porto Alegre, através da rede constituída pelo Conselho Municipal, os Fóruns Regionais e os Conselhos Comunitários de Segurança Urbana, não tem merecido a atenção adequada, no sentido de fortalecer o seu funcionamento. Sua continuidade tem dependido mais dos esforços das lideranças comunitárias do que dos gestores políticos da Secretaria. Mesmo órgãos da administração municipal, como a EPTC, foram ausentes nas reuniões. Os gestores políticos da Secretaria e da sua Coordenação de Segurança Urbana, pouco tem se envolvido e participado da construção do Conselho, atribuindo a responsabilidade a guardas municipais, que como funcionários têm desenvolvido um trabalho técnico, dedicado e necessário, mas insuficiente, pois a afirmação do sistema necessita da participação, do investimento e do comprometimento político de governo, tanto nas decisões e posições da gestão municipal, quanto no esforço de garantir a adesão dos demais organismos públicos. Não obstante o descaso e a despreocupação com o esvaziamento do Conselho, no final do ano passado, a Secretaria envolveu-se diretamente na eleição da mesa coordenadora do Conselho, chamando lideranças de suas relações, compondo uma chapa e articulando, com uma representação institucional eternamente ausente, a garantia dos votos para elegê-la. Mais uma vez, demonstrando descompromisso com a construção deste instrumento público tão necessário a construção de políticas alternativas. A realização da 1ª Conferência Municipal de Segurança Urbana, em maio de 2006, produziu importantes resoluções e moções para o tema da segurança em Porto Alegre. Cabe aqui destacar que somente foi realizada em razão do movimento comunitário, a partir da participação ativa e decisiva de um grupo de Conselheiros e integrantes dos Fóruns Regionais na organização e execução do evento. Pelo Poder Público Municipal, a conferência provavelmente não teria saído. Houve problemas na divulgação, na mobilização e na sistematização das propostas das plenárias regionais e locais, acarretando em uma participação comunitária aquém da potencialidade que poderia ter (em torno de 150 participantes), e uma participação mínima dos organismos públicos (por exemplo, comparando-se com a 3ª Conferência Municipal de Direitos Humanos (Mar2004) contou com a participação em torno de um mil pessoas, sem considerar as pré-conferências e os debates temáticos). O descaso municipal é tão significativo que até o presente momento as resoluções aprovadas na Conferência não foram divulgadas, apesar de cobranças repetidas do Conselho Municipal. Em relação às intervenções localizadas em áreas específicas e selecionadas segundo critérios de vulnerabilidade social e índices de criminalidade, que projetamos como estratégicas para aprofundar uma experiência alternativa que efetivamente enfrentasse e prevenisse a violência, houve interrupção e total descontinuidade. O que há é uma ação considerada "alternativa" ao processo previsto por nós nas 8 áreas localizadas pelo nosso projeto, denominada ' Cidadania e Paz', que na prática consiste em uma atividade pontual, fragmentada e solta, que no final do último sábado de realização, não deixa nenhum resultado. Isto é, os recursos estão sendo gastos sem nenhuma preocupação de estabelecer um processo que tenha continuidade e que venha a criar formas alternativas de enfrentar o problema da criminalidade e da violência e que construa uma metodologia que possa ser utilizada no desenvolvimento de políticas públicas. Por fim, cabe afirmar que o Programa de Segurança Cidadã, objeto do convênio com o Governo Federal, com recursos liberados, foi desconstituído. As ações implantadas possuem uma outra concepção, esporádica, pontual e fragmentada, inserindose no contexto tradicional da segurança pública e, assim, de concreto, não produzindo resultados. No entanto, como discurso político, a Secretaria e o Prefeito Fogaça continuam afirmando "que se trata de uma política de continuidade 'melhorada' e com os recursos do governo federal". Para nós, representa um claro retrocesso. Por um lado, uma perda de oportunidade do município de estar se constituíndo como gestor de uma política alternativa de prevenção e enfrentamento a violência a partir de suas competências e suas possibilidades peculiares, enquanto ente federativo. Por outro lado, a perda da oportunidade de realizar políticas e ações alternativas com a participação comunitária, afirmando o espaço público do Conselho e dos Fóruns, como possibilidade de superação da fragmentação e do afastamento dos órgãos que possuem responsabilidade com a segurança pública entre si, com o município e com a comunidade. * Texto constante do caderno "Com Fogaça, Porto Alegre mudou para pior - Balanço crítico 2005-2006", organizado pelo Diretório Municipal do PT
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